Vida vegetariana

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A Insustentável Leveza do Ser

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Ontem terminei de ler “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera. Algumas frases eu já conhecia (na verdade, elas me fizeram ler o livro). Separei algumas da última parte (páginas 279 a 284 – o livro é dividido em sete partes). Bon apetit…

No começo do Gênese está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo. O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade inteira manifesta acordo unânime, mesmo durante as guerras mais sangrentas.

Esse direito nos parece natural porque somos nós que estamos no alto da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro entrasse no jogo, por exemplo, um visitante de outro planeta a quem Deus tivesse dito: “Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas”, para que toda a evidência do Gênese fosse posta em dúvida. O homem atrelado à carroça de um marciano – eventualmente grelhado no espeto por um habitante da Via-láctea – talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar em seu prato. Pediria então (tarde demais) desculpas à vaca.

[…]

No caminho encontram uma vizinha que está indo para o estábulo, calçada com botas de borracha. A vizinha pára: – O que aconteceu com o seu cachorro? Parece que ele está mancando! Tereza responde: – Está com câncer. Está condenado – e sente a garganta apertar, quase não pode falar. A vizinha percebe as lágrimas de Tereza e fica indignada: – Pelo amor de Deus, não vai chorar por causa de um cachorro! – Não disse isso por maldade, é uma boa mulher, foi mais para consolar Tereza. Tereza sabe disso, mora no lugar há tempo suficiente para compreender que se os camponeses gostassem de seus coelhos como ela gosta de Karenin não poderiam matá-los e acabariam morrendo de fome no meio dos bichos. No entanto a observação da vizinha lhe parece hostil. – Sei – responde sem protestar, mas se apressa em dar-lhe as costas e continuar seu caminho. Sente-se sozinha em seu amor pelo cão. Pensa com um sorriso triste que deve escondê-lo mais secretamente do que escondesse uma infidelidade. O amor que se tem por um cachorro escandaliza.

Segue seu caminho com as novilhas que se esfregam umas nas outras, dizendo a si mesma que são bichos muito simpáticos. Pacíficos, sem malícia, às vezes de uma alegria pueril: parecem mulheres gordas, cinqüentonas, que fingissem ter catorze anos. Não existe nada mais comovente do que vacas brincando. Tereza as olha com ternura, e diz para si mesma (é uma idéia que lhe ocorre sem cessar há dois anos) que a humanidade é parasita da vaca, assim como a tênia é parasita do homem: agarrou-se à sua teta como uma sanguessuga. O homem é o parasita da vaca, essa é, sem dúvida, a definição que um não-homem poderia dar ao homem em sua zoologia.

Pode-se tomar essa definição como um simples gracejo e sorrir com indulgência. Tereza porém a leva a sério, e fica numa posição arriscada: essas idéias são perigosas e a distanciam da humanidade. Já no Gênese, Deus encarregou o homem de reinar sobre os animais, mas podemos explicar isso dizendo que ele apenas emprestou ao homem esse poder. O homem não era o proprietário mas apenas o gerente do planeta, e um dia teria de prestar contas de sua gestão. Descartes deu o passo decisivo: fez do homem “maître et propriétarie de la nature”. Que seja precisamente ele quem nega de maneira categórica que os animais tenham alma, eis aí uma enorme coincidência. O homem é senhor e proprietário, enquanto o animal, diz Descartes, não passa de um autômato, uma máquina animada, uma machina animata. Quando um animal geme, não é uma queixa, é apenas o ranger de um mecanismo que funciona mal. Quando a roda de uma charrete range, isso não quer dizer que a charrete sofra, mas apenas que ela não está lubrificada. Devemos interpretar da mesma maneira os gemidos dos animais, e é inútil lamentar o destino de um cachorro que é dissecado vivo num laboratório.

[…]

A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza, com toda a liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, num nível tão profundo que escapa a nosso olhar), são as relações com aqueles que estão à nosso mercê: os animais. É aí que se produz o maior desvio do homem, derrota fundamental da qual decorrem todas as outras.

Uma novilha se aproxima de Tereza, pára, e olha para ela longamente com grandes olhos castanhos. Tereza a conhece. Chama-se  Marketa. Gostaria de ter dado um nome a cada uma das novilhas mas não pode, são muitas. Há uns trinta anos certamente teria sido assim, todas as vacas do lugar teriam um nome (se o nome é o sinal da alma, posso dizer que elas tinham uma, apesar de desagradar a Descartes). Mas a aldeia tornou-se uma grande usina cooperativa e as vacas passam a vida em dois metros quadrados de estábulo.

Tenho sempre diante dos olhos Tereza sentada sobre um tronco, acariciando a cabeça de Karenin, e pensando no desvio da humanidade. Ao mesmo tempo, surge para mim uma outra imagem: Nietzsche está saindo de um hotel em Turim. Vê diante de si um cavalo, e um cocheiro espancando-o com um chicote. Nietzsche se aproxima do cavalo, abraça-lhe o pescoço, e sob o olhar do cocheiro, explode em soluços.

Isso aconteceu em 1889, e Nietzsche já estava também distanciado dos homens. Em outras palavras: foi precisamente nesse momento que se declarou sua doença mental. Mas, para mim, é justamente isso que confere ao gesto seu sentido profundo. Nietzsche veio pedir ao cavalo perdão por Descartes. Sua loucura (portanto seu divórcio da humanidade) começa no instante em que chora sobre o cavalo.

É este Nietzsche que amo, da mesma forma que amo Tereza, acariciando em seus joelhos a cabeça de um cachorro mortalmente doente. Vejo-os lado a lado: os dois se afastam do caminho no qual a humanidade, “senhora e proprietária da natureza”, prossegue sua marcha para a frente.

KUNDERA, Milan. A Insustentável Leveza do Ser. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Written by candeeiroverde

3 de março de 2010 às 1:54 pm

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